Resquício do picuá

Jessé Souza* 

Na década de 80, Boa Vista parecia um filme de faroeste caboclo, muito mais realista do que o cantado pela banda Legião Urbana, que acabou virando filme. Tempo do El Dorado, o comércio boa-vistense era obrigado a ter uma balança de precisão para receber o pagamento das mercadorias em ouro.
Os preços eram estratosféricos porque a moeda que tinha valor era apenas o ouro. Ostentação era ter uma garrafinha de plástico pendurada na cintura cheia de pó de ouro. Essa garrafinha era chamada de picuá. Quem chegava com um picuá na cintura era reverenciado. E quem não tinha uma balança de precisão perdia o cliente.
Obviamente que, enquanto o comércio faturava alto, dando-se ao luxo de dispensar um cliente com dinheiro na mão (a não ser que fosse dinheiro em mochila de um garimpeiro), a periferia ficava com o ônus da carestia e da violência que fatalmente chega com o garimpo predatório.
Havia garimpeiro que pedia para tomar cerveja na calçada do bar para que ele pudesse esticar as pernas e, quando alguém tropeçasse nelas, era o motivo para morrer com um tiro na cara. Outros chegavam a um bar e mandavam “fechar” o estabelecimento somente para eles, inclusive assumindo a conta do consumo de quem estivesse lá. E com direito a garotas de programa dançando em cima da mesa.
Esse tempo, que era da minha adolescência, já vai longe. A Avenida Ataíde Teive, em toda sua extensão no bairro de Liberdade, foi transformada em um imenso arraial garimpeiro, com farra 24 horas, principalmente no prostíbulo chamado “Baiano” e na casa de show “Júlio Iglesias”.
Vários comércios se formaram ao redor. É por isso que a Ataíde Teive se tornou o segundo centro comercial de Boa Vista, depois da Avenida Jaime Brasil. Mas não foi só essa herança que a cidade herdou.
Muitos comerciantes e empresários também herdaram a “mentalidade do El Dorado”, como se suas ganâncias ainda pudessem explorar o consumidor como se vivesse no tempo do garimpo.
Muitos não querem cobrar preços justos, achando que o lucro tem que ser alto e o retorno do investimento imediato. Mas a concorrência está chegando, a exemplo do que mostrou o hipermercado que expôs a ganância descabida de todos os donos de supermercado.
Porém, os outros setores ainda precisam levar um choque de realidade. Neste domingo, fui almoçar com meus filhos em um dos locais do complexo Ayrton Senna e percebi que, depois de vários reajustes de preços sequenciais, o churrasquinho chegou ao preço de R$19,00. Isso mesmo! Mais caro do que um prato nos restaurantes dos dois shoppings.
É a mentalidade garimpeira que ainda deixou resquício. Ou mudam de atitude, ou vão falir e depois culpar a crise, o Lava Jato, o Cunha ou a Dilma. Eu, por exemplo, agora vou preferir o shopping com ar-condicionado, estacionamento e segurança...
P.S.: Artigo publicado originalmente na Folha de Boa Vista
*Jornalista
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